Foi assim que tudo começou
Era
manhã de Natal, em 1950, quando, entre os trópicos de Câncer e Capricórnio, fui
depositado neste planeta.
Apanhei
um enorme susto, quando, sem nenhuma razão aparente, levei uma palmada.
“Que
violência!” – Pensei.
Chorei
muito com o desejo de voltar, mas em casa o rebuliço era tanto, não me deram
ouvidos. Limitaram-se, entre lágrimas de alegria e sorrisos de contentamento,
juntarem-se, à minha volta, como se estivessem a receber o menino Jesus.
Ledo
engano! Apenas, uma coincidência de datas, apesar do meu pai ter se chamado
José e minha mãe, Maria!
E,
mesmo porque, segundo reza a história, Jesus teria nascido à meia-noite, entre
os dias 24 e 25 de Dezembro, enquanto que eu nascera às 10 horas da manhã do
dia 25 do mês em questão.
A
cama, num quarto em penumbra, em cuja casa, por décadas e décadas, tantos
outros “Jesuses” haviam nascido e, tantos outros haveriam de nascer,
transformara-se, naquele momento, no meu presépio particular, instalado no
interior da estrebaria que me abrigara. Tornei-me o dono absoluto de uma
manjedoura privada, cujo alimento era o leite materno, servido à ténue luz a
entrar pelas frestas das janelas e a misturar-se com a chama do pavio do
candeeiro à querosene, estrategicamente colocado sobre a mesa de cabeceira. Uma
mistura de odores competia, cada um deles, por um espaço naquele aposento e nas
nossas narinas. Como complemento, as lágrimas da família, o orgulho da
parteira, o nervosismo do meu pai e o cansaço da minha mãe que a fez adormecer
extenuada. Ali e, naquele momento, eu era o rei, o grande-pequenino, o esperado,
o mais importante, depois da minha mãe, claro, a qual, com a bravura de uma
leoa, dera-me à luz, como fizera aos outros quinze irmãos, nascidos do mesmo
ventre, uns antes e outros depois de mim.
O
tempo passava, lentamente, antecipando-me, com uma certa precocidade a lição
sobre o conceito de distância, movimento e espera. Tinha urgência em
aprendê-la, pois, à partir daquele momento, a vida já me apresentava situações
semelhantes às que viveria durante todos os anos que se seguiriam. A paciência
e a tolerância teriam que ser exercitadas, se quisesse sobreviver a tudo o que
viesse depois.
Com
força hercúlea, fui tentando à tudo me adaptar. Numa rapidez, não própria a
todas as crianças, logo percebi para qual planeta a cegonha me havia raptado.
Naquela manhã, fizera conexão em algum alambique, bebera cachaça ao
pequeno-almoço e enganara-se de rota, levando-me a constatar que estaria
condenado, até ao fim dos meus dias, a habitar o subsolo da cadeia planetária.
Não
deixei, contudo, de perceber a beleza existente em tão inesperada experiência.
Nos meus primeiros anos de vida assimilei com todos os sentidos e de forma
gulosa, o sabor das quatro estações do ano e a delícia de nadar nas águas de um
rio, cujo ventre se abria, incondicionalmente, como se estivesse num eterno
cio. Recebia e afagava-me o corpo com as suas águas tropicais, doces e tépidas.
Em seguida, oferecia-me o relaxante repouso sobre a areia das suas margens,
onde me deitava, num abandono de pós orgasmo. Naquele silêncio, fabricado pela
ausência de ruídos incómodos, absorvia o perfume das plantas silvestres a
exalarem, como em competição, cada uma os seus cheiros. Meu aparelho auditivo
absorvia os diversos e naturais ruídos, aqueles que não cansam, não incomodam,
nem danificam o ouvido humano. Desse habitat, onde insectos, pássaros e
pequenos animais coabitavam, surgia uma harmoniosa orquestra, somente
encontrada na natureza. E, nesse cenário, as carícias de um luminoso sol que a
tudo e a todos abraçava, sem pedir licença e, sem solicitar nada em troca,
servia-me de cobertor. E, quando já fosse noite, pequenas lamparinas salpicavam
o céu, despertando os vaga-lumes, os grilos e os sapos para um novo concerto.
Essa foi a precoce lição que a natureza me deu sobre o amor incondicional.
Tudo
estaria bem se, eu, com a minha curiosidade, possivelmente herança genética dos
primeiros bíblicos pais, não tivesse olhado para os homens.
Foi
aí, então, que me perdi.
Logo
percebi que, uns, embora não fossem guerreiros, fabricavam guerras, usando e
abusando das mesmas, com o pretexto de conquistarem a paz. Tive, então, a minha
primeira lição sobre a incoerência.
Compreendi
porque o dinheiro, razão para tantas guerras, era um metal precioso com o qual
se poderia comprar quase tudo. E, assim, tive a minha primeira lição sobre a
ganância.
Assimilei
o conceito da dualidade, e descobri o difícil lema da escolha.
Senti,
profundamente, pesar de não ter sido, mesmo, capaz de, através do meu choro,
convencer a família, em mandar-me de volta para o mar salgado de onde viera e do
qual nunca manifestara, oficialmente, o desejo de um dia sair.
Hoje,
ando pelas ruas e florestas do mundo à busca do entendimento da vida. Às vezes,
penso estar no bom caminho mas, de repente, tropeço e tenho de recomeçar. É
quando, então, me transformo em Fénix e, pedaço à pedaço vou juntando tudo,
colando, remendando, tomando fôlego para me erguer mais forte do que fora até
então.
Contudo,
sinto-me feliz pela capacidade em buscar, lá bem fundo, a força, tantas vezes,
aparentemente ausente, ao ponto de quase não acreditar que exista. Quando o
“depósito” parece vazio, eis que um filete de luz emerge do meu interior
transformando tudo. Até parece milagre! Depois, há os amigos... ah... os
amigos... tão preciosos!... Uma das suas funções é nos ensinar a não perder a
fé na bondade humana e, muitas vezes, nos resgatar dos buracos nos quais,
inadvertidamente, caímos.
Detesto
a solidão; quando imposta é o mais pesado dos fardos; mal gerida pode fazer
sucumbir o mais forte dos homens. No entanto, quando por opção, poderá ser a
companhia ideal, cuja cumplicidade nos auxilia no encontro de respostas às
questões que nos aflijam, tornando-nos mais discernidos, mais sábios, mais
acertivos.
Acho-me,
contudo, mais polido, do que o dia em que levei a primeira palmada. Incomoda-me,
contudo e ainda, o facto de não ter sido capaz de eliminar certos vícios
adquiridos pelo meu caminho, tais como o “egoísmo” e a “impaciência”.
Da
minha aprendizagem religiosa, conclui que o homem não precisa de uma religião
para estar bem com o seu deus; necessita sim e somente de uma crença que o
coloque em harmonia com todas as coisas que o cercam. À essa postura dou o nome
de espiritualidade; no meu entender, essa, somente poderá ser alimentada
através da sua crença nas coisas, nas pessoas e nos momentos bonitos com os
quais a vida nos brinda, quotidianamente. Somente assim, acredito, ele estará
bem com o seu deus, com o universo, com o seu semelhante e consigo próprio.
Descobri
a imagem e a palavra, através das quais tento trabalhar a minha emoção. Isso me
permite ser suficientemente pretensioso para impingir aos que me cercam, um
pouco da beleza que entendo existir nas minhas criações.
Se
pudesse escolher, ao voltar a este planeta, seria em forma de sol para iluminar
a todos, sem distinção; ou em forma de sangue, que só tem uma cor, apesar de
alguns ainda acreditarem no azul.
Entretanto,
amo as cores, mas quando vejo o Ser Humano ser discriminado por elas,
entristeço-me. Nesses momentos, reconheço a fragilidade e a inconsistente
liquidez na qual nos afogamos; liquidez de sangue, de suor e de lágrimas. E se
muitas vezes não nos apercebemos é porque nos deixamos afogar na fragmentação
de uma incontida grandeza que carregamos no olhar e que se perde entre os
receios, medos, temores, recusas e omissões gerados nas nossas próprias
entranhas.
E, é
nesse processo de observação que me desnudo e me lanço numa aventura constante,
na busca de um despertar maior da minha consciência e descobrir novos mundos,
cujos “habitantes” com as suas almas grávidas de paixões, me acenem num convite
para um grande festim; sem máscaras, aceitaria esse convite e beberia o néctar
que me fosse servido. Sob o seu efeito, me embriagaria e dançaria a grande
dança que só se dança quando se tem a alma desnuda e o coração aberto para a
vida; e que essa vida, fluindo em todos os pontos do universo, se tornasse,
definitivamente, um património comum a todos; nesses novos mundos haveria
apenas uma regra: todo ser humano teria direito à vida plena e o dever de a
preservar, evitando, assim, que essa fosse roubada, denegrida, injuriada... Que
todas as suas necessidades básicas – alimento, tecto, educação, saúde e lazer
fossem atendidas, sem que se tivesse de implorar como se de esmola se tratasse.
O resto viria por acréscimo, em prol da felicidade de todos. Depois, nada
sobraria, a não ser a certeza de, através dela, a missão cumprida.
Isso
faria brotar dos nossos lábios, o riso largo e franco que ameniza a dor. E uma
eterna gargalhada inundaria o mundo, destruindo, para sempre, as máscaras
moldadas pela tristeza que invade o coração dos homens. Seria o orgasmo total,
pleno e irreversível pelo qual uma alma humana jamais tivera passado.
Por
isso, fica aqui, o convite.
Apesar
de todos os dissabores pelos quais passamos, neste subsolo da esfera
planetária, vamos, todos, orgasticar, numa eterna orgia, pois é muito bom!