fotografia & texto © agnaldo lima
Os Castrados de Deus
Viver no mundo
moderno…
Vestimo-nos com peles
de cordeiros, e passeamos, garbosos, sobre as próprias carcaças, carregando,
iguais a hienas, um riso sarcástico no canto das bocas.
Por inveja, símbolo
da nossa incapacidade, aniquilamos, impiedosamente, o outro, naquilo que ele tem de
mais precioso. Transformamo-nos em morcegos e sugamos-lhe o sangue, enquanto
lhe sopramos a ferida para que ele não se aperceba do sangue que perde; assim,
podemos voltar na noite seguinte, com a lingua afiada e despida de
remorsos.
Viver no mundo
moderno exige esforço, rapidez e coragem para enfrentar o ritual de morrermos,
lentamente, todos os dias. Da mesma forma, passiva e resignada, como o cordeiro
recebe a sua morte, aceitamos o ritual da transformação e, assumimos, sem
receio, a perda de tudo o que veio antes, como base para a maturidade que tanto
nos exige.
Tudo é tão rápido,
tão efêmero... nada cria raízes! Mal começamos a nos acostumar com o novo, algo
mais novo aparece, destronando o objecto do nosso desejo. As relações sociais e
afectivas, de forma sutil, vão sendo, também, devastadas pelo contágio da
cultura do efêmero, do temporal.
Tornamo-nos
descartáveis, da mesma forma em que descartamos os objectos que criamos.
Descartar tornou-se um vício em torno do qual quase todos se confraternizam; é
a febre de um momento que há muito começou e se perpetua à cada dia.
Descartamos as
pessoas, pois é muito trabalhoso devolver-lhes o amor com o qual nos alimenta
e, por isso, inventamos desculpas para nos livrar do que achamos chato, cansativo,
monótono e incómodo.
Numa postura
insolente de quem tudo sabe, de quem conhece todas as respostas, descartamos o
outro à busca de um ilusório, de um egoísta e passageiro estado de paz.
Vivemos à busca do
amor, da amizade, do companheirismo e quando isso acontece destruimos tudo,
embriagados que ficamos pelo medo de sermos felizes. E, assim, vamos, ao longo
da vida, desenvolvendo projectos inacabados. Depois, no meio da noite,
choramos, sozinhos, frente ao espelho e descobrimos, enfim, a amplitude da nossa orfandade.
Para compensar, os
descartes que fazemos, enganamo-nos com o jogo do tudo reciclar, pois fica bem
na fotografia, a pseudo preocupação com o destino do planeta. Mas, como temos
memória curta, facilmente esquecemos de que somos o planeta; um planeta
constituído por ilhas flutuantes que, ora se tocam, ora se repelem, umas mais
selvagens que outras, mas todas prisioneiras do mesmo medo que as mantém
solitárias.
Reciclamos tudo, mas
não reciclamos o amor, não reciclamos a amizade, não reciclamos o
companheirismo e todos os valores primários que nos colocaram sempre e, de
forma errónea, à frente dos outros animais.
As oportunidades nem
sempre se repetem, e, quando acontece, nem sempre nos encontram no mesmo lugar,
disponíveis a aceitá-las. Por isso,
deixamos passar tantos momentos únicos, os quais só nos enriqueceriam, movidos
que somos pelo absurdo medo, pela tacanha crença de sermos diferentes, numa
frágil certeza de cada um ser um personagem único e superior escolhido por
algum deus.
Quase ninguém está
imune a essa doença que se propaga, de geração em geração, como um castigo
dictado por deuses arrependidos da obra que criaram. Quase ninguém escapa à
essa epidemia, à essa tatuagem talhada na carne e no espírito, como se fora um
desígnio genético.
O mundo moderno
destina-se a quem é jovem, belo, rico e sem defeitos aparentemente provocadores
de incómodo social. A matéria humana que o alimenta, já nasce
pronta. É a geração do “prêt-à-porter”. A selecção é impiedosa, feita com
requinte. E os destituídos de tais predicados continuarão a rastejar, iguais a
vermes, em busca de um pouco de sol.
Quantas ilhas
flutuantes tiveram as suas almas assassinadas no florir das suas existências,
por outras almas sedentas de prazer e famintas de maldade?... Quantas outras
ilhas continuarão a ser decepadas, decapitadas, estranguladas, bombardeadas e
extintas por carrascos mascarados de falsos sorrisos e palavras doces, bem
intencionadas?...
Caminhamos, sem rumo,
por ruas indecisas, levando, cada um, a sua carcaça anestesiada, tal sarcófago,
em cujo interior guarda as cinzas do que a sua alma já fora.
Somos as flutuantes
ilhas castradas de Deus, castradas pelas próprias irmãs nascidas da mesma
fornalha.
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